Desde o início do século XIX duas potências tentaram impor-se no mapa político da Europa, muito diferente do atual: a França tentando dominar territorialmente construindo o império napoleónico (1804-1814) e a Inglaterra, então a maior potência industrial, construindo também o império, “onde o sol nunca se põe”, dominante no mar.
GENERAL JUNOT
GENERAL SOULT
GENERAL MASSENA
Mappa do itinerario que trouxe o Marechal Massena, quando com o seu exercito invadiu o reino de Portugal em Setembro de 1810…
Gravura de João Palha, Lisboa: Lithographia da Imprensa Nacional, [s. d.].
Batalha do Buçaco, tropas portuguesas e britânicas contra as francesas, 27 Set. 1810
A terceira invasão, liderada pelo Marechal Massena, um dos mais conceituados marechais de França, ataca Portugal a partir de Almeida e dirige-se para o centro do país. Após terem tomado Viseu, os ingleses tentaram impedir o avanço para Lisboa defrontando e derrotando os franceses na Batalha do Buçaco. Apesar disso, continuaram a marchar para a capital, esbarrando, no entanto, no sistema defensivo das linhas de Torres Vedras.
Imobilizados nas linhas de Torres, sem meios de abastecimento, os Franceses pilharam sistematicamente uma vasta região. Em Março de 1811 iniciaram a retirada. Desesperados pela fome, buscando mais a sobrevivência do que o combate, levaram as atrocidades ao último grau, apanhando as populações em fuga, a quem torturavam e matavam para lhes extorquir víveres.
Estiveram na Região da Beira Serra entre o dia 12 e 19 de Março de 1811. A 14 de Março de 1811 os Segundos, Sexto e Oitavo Corpos do exército francês tomaram posições na margem do Ceira, para a defesa da travessia da ponte de Foz de Arouce. No dia seguinte, as divisões de infantaria britânica que vinham no seu encalço comandados por Picton e Erskine, num total de 8.500 homens, encontravam o exército francês nesta posição. Travou-se a batalha da Foz de Arouce.
WILSON. Robert (brigadier general), A narrative of the campaigns of the loyal Lusitanian legion. With some Account of the military operations in Spain and Portugal in the years 1809, 1810 & 1811, printed for T. Egerton, military library, Whitehall, London, 1812, Appendix, p. 313-315.
O próximo obstáculo na retirada dos franceses era a ponte de Mucela que se encontrava completamente destruída. A sua reconstrução iniciou-se a 13 de Março pelos sapadores, comandados por Valazé, tendo ficado concluída na noite de 16. Na madrugada do dia 17 de Março começam a passar a ponte. “São mais de 40.000 homens, milhares de cavalos, burros, mulas, bois, ovelhas, cabras, canhões, carros e carroças, com mantimentos, munições, feridos e tropas. A 17 e 18 de Março há tropas por todo o lado, desde o Mucelão, S. Martinho, Sarzedo, Arganil, Secarias, Mouronho, Meda de Mouros, Oliveira do Hospital…”
Com receio que a ponte fosse usada pelos perseguidores, Valazé ordenou a destruição do arco reconstruído depois da passagem dos franceses.
“No dia 18, de manhã, a Divisão Ligeira e a 6.ª Divisão aproximam-se do Alva, a oeste, repelindo a guarda de retaguarda francesa para além da ponte, e manobram de forma a abrir fogo sobre a margem contrária, com infantaria e artilharia. O objectivo era manter Ney nas suas posições e atravessar a montante do rio sem resistência. Esta operação de decepção funcionou, pois na tarde desse dia Ney tomou conhecimento que os aliados tinham atravessado o Alva na região de Pombeiro, seis quilómetros a montante, numa zona onde o rio ser penteia entre as montanhas, e de onde tinha sido desalojado um batalhão de Reynier (Oman, 1911, 164). A montante, as 1.ª, 3.ª e 5.ª di[1]visões contornaram o flanco francês, pela serra de Santa Quitéria, e na noite de 18 os corpos franceses retiraram das regiões de Moita – Galizes, para se dirigirem na direcção de Celorico, sem entrar em combate (Gurwood, ed., 1837, 372).”
Rui Moura, A Retirada de Massena O fim de um pesadelo ou o princípio do fim de um sonho
In: O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular, 221, 27
STOTHERT, William (Captain), A narrative of the principal events of the campaigns of 1809, 1810 & 1811, in Spain and Portugal interspersed with remarks on local scenery and manners in a Series of Letters London printed for P. Martin, 1812, p. 228-231.
In: A Comarca de Arganil nº 4581 (20.11.1956), p. 1 e 2
A 19 de Março, os últimos franceses abandonam a Serra da Moita. Nesse mesmo dia a serra é ocupada pelas tropas Luso-Inglesas comandadas pelo General Wellington. Permanecem dois dias à espera de mantimentos de Lisboa e de ordens do Parlamento Inglês.
Em carta datada de 23 de Março de 1911, enviada pelo padre Manuel Gomes Nogueira, ao seu irmão José Acúrsio das Neves, é dada uma visão clara sobre a gravidade dos flagelos que a população e as localidades por onde as tropas foram passando na sua retirada, sofreram.
Os primeiros que nos acometeram, foi em 14 de Fevereiro, aparecendo de repente em Góis uma divisão […] e somente junto da vila se deu notícia deles, e se não fosse um homem que os viu entravam sem serem vistos.
No pequeno espaço que mediou até eles se apresentarem defronte da terra, se ajuntaram algumas espingardas que de dentro da vila fizeram fogo para além da ponte e eles se retiraram e deixaram 7 ou 8 bois que os de Góis lhes tomaram e logo puseram a salvo para a freguesia de Cadafaz. Mas os malditos se foram unir com outros que tinham ficado mais atrasados, entraram na vila e fizeram as barbaridades do costume […].
No dia 17 do mesmo Fevereiro estiveram também a pontos de entrar em Arganil, sem serem pressentidos, pois tendo-se retirado a 15 de Góis para Serpins, com imensos gados e roubos de Góis, Várzea [de Góis, actual Vila Nova do Ceira] e toda a Serra de Santa Quitéria, estava Arganil mais sossegada, mas no dito dia 17, que era domingo, de manhã ao sair da primeira missa, chegou a noticia de que já vinham na Ribeira da Aveia (vê agora o perigo que houve, se entravam enquanto se estava à primeira missa). Ninguém se persuadia de tal por ser voz só de um homem, mas veio segundo, que confirmou o primeiro, e então se pôs tudo em reboliço e fugida, e eles entraram de repente, como galgos atrás da gente, e imediatamente subiram ao Casal [da] Nogueira e se espalharam pelos montes, vales, pinhais, mataram 5 pessoas e feriram muitas […].
Estiveram neste dia em Arganil somente 2 para 3 horas; passaram a Celavisa, onde mataram e fizeram o mesmo que em Arganil […].
No dia 12 de Março tornaram a entrar os Franceses em Arganil. No dia 14 subiram à serra no lugar da Aveleira […] onde apanharam muitos gados, vieram sobre Adela e fizeram cerco a toda a ribeira de Celavisa, onde não ficou moita que não fosse mexida […].
Estiveram sempre passando Franceses todos os dias seguintes, ora mais ora menos, até que no dia 17 foi a maior enchente de cavalaria e infantaria, e então foi a destruição de Arganil. Mataram 10 pessoas que ainda apanharam”. […]
Neste mesmo dia 17 fui eu daqui com mais 50 pessoas ao alto da serra de Aveleira e vimos entrar a tropa inimiga que vinha da parte da Sarnadela em direitura ao pinhal de Magalhães e dali passava ao Sarzedo que foi o teatro do inimigo; outros se encaminharam em dois esquadrões para a parte das Secarias que supus irem para Coja, outros se espalharam pela Nogueira, Casal de S. José, Nossa Senhora do Monte Alto, Folques e outra vez à Ribeira de Celavisa, neste dia incendiaram muitas casas na vila. […]
No dia 18 ainda entraram mais franceses, mas seria uma hora de sol, estando eles acampados entre o pinhal de Magalhães e Lomba do Salão, e entre S. Pedro e a tapada do Sr. da Ladeira, chegando a eles as avançadas do nosso exército, houve muito fogo, e alguns franceses prisioneiros mas não digo o número porque variam muito na conta os que presenciaram a contenda. A verdade é que somente um homem levou para a sua casa 5 ou 7 espingardas francesas; foram acossados até ao barco das Secarias [barca de Secarias], onde me dizem que estão alguns franceses mortos. A este tempo estava uma grande cavalaria francesa no Sarzedo acampada além do povo; ocupava desde o ribeiro das Lages até às partes do Cançado [Cansado?] e abas da Serra (será quase meia légua de comprimento) mas ao amanhecer já não havia sinal dela.
“No dia 19 logo de manhã me constou aqui da chegada das nossas tropas […]. Desci logo à vila [Arganil] e fui dos primeiros que lá entrámos depois dos Franceses. Corri as casas dos nossos amigos e as igrejas todas e causava horror ver semelhante confusão: as portas quebradas, as casas não pareciam senão uma confusão, trastes despedaçados, tudo revolto, nada em seu lugar, as lojas cavadas, quantos esconderijos se tinham feito para cada um refugiar o que podia, tudo descoberto, pelas ruas louças quebradas, animais mortos, uns inteiros, outros em pedaços, de outros só as entranhas com fétido por toda a parte.
Parti logo para o Sarzedo e por toda a estrada abaixo eram os mesmos vestígios de animais mortos” [… Em] Sarzedo fizeram muita carnagem, porque os habitantes como lá não tinham ido Franceses não se acautelaram a si nem aos seus gados; e, portanto, perderam tudo e morreu muita gente: o número não o posso ainda dizer, mas consta-me que morreram famílias inteiras”. “
… Agora o que mais deve lamentar-se é a fome, porque não só os pobres, mas também os ricos não têm coisa alguma que comam, porque por onde passou a tormenta nada absolutamente ficou, nem de mantimentos, nem de carnes, nem de hortaliças. E se alguma coisa escapou ao inimigo, o limpou a nossa tropa e assim mesmo os pobres soldados vão mortos de fome.”
A transcrição desta carta na ortografia original foi feita por Ramiro Carreira dos Santos e publicada n’A Comarca de Arganil nº 4581 (20.11.1956) e nº 4582 (22.11.1956)
À fome e aos assassínios, e acompanhando as vagas de desalojados e de órfãos, sucederam-se as epidemias. Regressadas às suas casas, as populações encontraram a destruição e os campos estéreis. A escassez de géneros tornou-se aflitiva e os preços dispararam. (LOPES, Maria Antónia, 2011, p. 4)
Um aviso régio de 25 de Março de 1811 mandou proceder ao registo dos estragos, incêndios e mortos provocados pela 3ª Invasão Francesa. (…) Para se cumprir o Aviso, foram encarregados os párocos de elaborar relações dos prejuízos e vítimas das freguesias. (LOPES, Maria Antónia, 2011, p. 7 e 8)
Fonte: Breve memória dos estragos causados no Bispado de Coimbra pelo exército francez, commando pelo general Massena estrahida das Informações que derão os reverendos párocos e remetida à Junta de Socorros da Subscipção Britanica, pelo Reverendo Provisor, Governador do mesmo Bispado. Lisboa, na impressão régia, anno 1812
O pároco de Arganil descreve a morte de um colega de 76 anos: “Foi morto pelo modo o mais cruel: depois de ser atormentado cruelmente no campo, aonde foi achado, daí foi trazido com uma corda ao pescoço para sua casa, aonde depois de lhe[s] ter dado todo o dinheiro que tinha escondido em várias partes, o mataram à espada e baioneta, castrando-o sobre a cama e levando em um barrete eclesiástico as suas partes pudendas.” (LOPES, Maria Antónia, 2011, p. 12)
O prior de Vila Cova de Sub-Avô (atual Vila Cova de Alva, concelho de Arganil) relata: “Mataram também a um clérigo […] muito achacado de gota, por cuja moléstia havia quatro meses que estava de cama. E quando foi a invasão se retirou em um carro para um lugar retirado daqui um pouco, onde lhe parecia estava seguro, mas os malvados lá foram dar com ele em um mato e à força e com cutiladas, picadas e pancadas o fizeram andar uma ladeira e no cimo dela lhe partiram ou dividiram a coroa em quatro partes e lhe fizeram pela barriga suas aberturas, de sorte que se viam as entranhas. Depois de o martirizarem com tormentos indizíveis, acabou com um tiro sua vida, tendo de idade 49 anos e sendo ainda para mais seu pai espectador desta cena tão trágica, o qual também logo mataram com um tiro”. (LOPES, Maria Antónia, 2011, p. 12)
As invasões francesas marcaram o nosso país e, embora Arganil apenas tivesse sentido diretamente os efeitos da 3ª Invasão, este foi um período da História de Portugal que não deve ficar esquecido. É um período que deve ser lembrado e transmitido:
“Foram tempos de orfandade de poder, de grande incerteza política, de enorme instabilidade social, de desmoronamento e ausência da autoridade de um Reino, cuja Corte estava no Rio de Janeiro, a milhares de quilómetros de distância; também a ausência de autoridade a nível local, traduziu-se no aparecimento dos mais variados tipos de poderes, caciquismo, oportunismo e manipulação das populações, exercido por Clérigos e Senhores, sem esquecer as vinganças e os linchamentos de circunstância e os grupos de guerrilheiros e salteadores virados contra os próprios compatriotas. Acresce toda a actividade beligerante e de ocupação de um território por um exército invasor, amiúde com práticas de inaudita violência sobre a população civil, mas também a presença de exércitos estrangeiros, defendendo os seus interesses em Portugal, como os ingleses, espanhóis e alemães, que tendo os portugueses como aliados não deixavam de ser um exército de ocupação…” (SOUSA, João Paulo Gaspar de Almeida, 2016, p. 83)