Fernando do Valle

Fernando Baeta Cardoso do Vale nasceu em Cerdeira, concelho de Arganil, a 30 de Julho de 1900.

Era filho do Dr. Alberto da Maia e Cruz do Vale e de D. Maria Adelaide da Costa Cardoso do Vale e neto paterno do Dr. Abel Pereira do Vale, Magistrado muito distinto que foi Juiz da Relação.

Fernando Baeta Cardoso do Vale nasceu em Cerdeira, concelho de Arganil, a 30 de Julho de 1900.

Era filho do Dr. Alberto da Maia e Cruz do Vale e de D. Maria Adelaide da Costa Cardoso do Vale e neto paterno do Dr. Abel Pereira do Vale, Magistrado muito distinto que foi Juiz da Relação.

O pai, nascido em Ponte de Lima quando seu avô era Juiz naquela Comarca foi médico ficando inválido aos 60 anos em consequência da queda de uma mula quando ia tratar de um doente. Dizia, quem o conheceu, que era um autêntico “João Semana” tratando desinteressadamente quem precisava de ajuda.

Os avós maternos eram abastados lavradores, ele natural da Pampilhosa da Serra e ela do lugar da Mata – Fajão, residentes na aldeia de Cerdeira.

Fez a instrução primária em Coja e o Ensino Secundário no Colégio de S. Pedro e Liceu Central de José Falcão, em Coimbra. Licenciou-se em medicina e cirurgia, com distinção, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Durante os anos de estudante em Coimbra foi Membro da Comissão Reorganizadora do Centro Republicano Académico de Coimbra.

Em 1923 tendo como proponente o seu conterrâneo e amigo Martins de Carvalho entra na Loja A revolta, seguidora do rito francês e orientada para a iniciação maçónica dos estudantes.

No início de 1926 um grupo de estudantes da universidade de Coimbra organiza a “Semana da Seara Nova” tendo Fernando Vale participado como Membro da Comissão Organizadora. Foi também membro da direcção do Jornal “Humanidade”.

Participa, activa e militantemente, nas lutas reivindicativas e progressistas da academia de Coimbra.

Em 1927 regressa a Arganil.

“Médico municipal de curto salário, ficava a comida no prato se o chamavam para ir ver algum doente, tivesse ele gripe ou cólera. A todas as horas do dia ou da noite, a chover ou a nevar, a pé ou a cavalo, qual novo “João semana”, de seringa e pílulas na maleta, ia tentar curar febres ou feridas, entrites e escleroses, maleitas e mazelas.”

Na Farmácia Galvão, centro de conversa e de jogos de xadrez em Arganil, além do médico municipal, juntam-se o advogado e notário Augusto Coimbra, de fino sentido de humor, o professor primário Lopes da Costa, místico da vida e que dirigirá A Comarca de Arganil, o ocioso e emblemático tesoureiro da câmara Abel Perdigão, que chega a pagar a outro para lhe desempenhar as funções, o tão sarcástico como melindroso Ventura da Câmara, licenciado em Direito e antigo secretário da Academia de Belas Artes de Lisboa, dono de uma boa colecção que tinha na sua Quinta do Mosteiro, junto a Folques.

Àquela tertúlia de botica, juntavam-se ainda o ex-escrivão Frederico Simões, o conservador do registo predial João Vale, o oficial da mesma repartição, António Mendonça, os jovens advogados Eduardo Ralha e Marcelo Matias. Mais raras seriam as presenças do mestre-escola do Sarzedo, José de Almeida Teixeira, e do excêntrico matemático de Coja, António Carlos Cardoso. Em tempo de férias, também surgiam os universitários da terra, como Abel de Almeida, Albano Nogueira, Jaime Teixeira, Amândio Rodrigues, Adelino Matias Galvão, António dos Santos Fernandes. Até o irmão da professora Arminda Sanches, ali colocada a leccionar, que dava pelo nome de… Marcello Caetano!

In: A Comarca de Arganil n.º 1612 (17.01.1930), p.1.
In: A Comarca de Arganil n.º 1615 (28.01.1930), p.1

Naquele dia, porém, o farmacêutico Francisco Torres Dias Galvão larga a atenção dos frascos.

O jovem médico arganilense envolve-se em polémica com o clínico, Alípio Barbosa Coimbra, escreve uma Carta Aberta ao Dr. Fernando Vale, publicada em A Comarca de Arganil, na altura ainda bi-semanário, a que Fernando Vale dá réplica , no mesmo jornal, dirigido por Eugénio Moreira.

In: A Comarca de Arganil n.º 161 (10.01.1930), p.1

Em Janeiro de 1930, Fernando Vale lança uma campanha para aquisição de um aparelho de Raios X para o Hospital Condessa das Canas, revelando uma extraordinária visão de progresso, numa era em que o curandeiro Tomás da Silva, o célebre , freguesia de Vila Nova do Ceira, é preso em Coimbra.

A 17 de Junho, na primeira página de A Comarca de Arganil, lê-se: “Uma ideia generosa – o aparelho de Raios X será um melhoramento com que o nosso Hospital vai ficar dotado e que se deverá à iniciativa do Sr. Dr. Fernando Valle e à generosidade dos filhos desta região”

Em Arganil dois grupos culturais: o Grupo Dramático Argus e o Grupo dos Operários fundem-se aproximando culturalmente estudantes e proletários, levando à criação da Sociedade de Cultura e Recreio, formando-se a 16 de Janeiro de 1933 a Sociedade Recreativa Argus que mais tarde se virá a chamar Associação dos Bombeiros Voluntários Argus, da qual foi médico.

Fernando Vale para além de ser o sócio nº 1 da Associação é também o seu primeiro Presidente da Direcção. Desta Associação sairão ainda o Grupo Desportivo Argus e o Grupo Dramático e a intenção de formar uma biblioteca o que dá o contexto para a realização de palestras sobre várias temáticas.

Em 1940 é nomeado subdelegado de saúde em Arganil no lugar que ficou vago após a aposentação do Dr. José Leitão, seu cunhado.

Médico fundador do posto médico da Assistência Folquense, que sempre trabalhou em prestação gratuita de serviços.

1943 – Adere ao MUNAF, Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista – dirigido por Norton de Matos e que editava o jornal “Libertação Nacional” que reunia nomes como Baeta de Campos, Fernando Vale, Martins de Carvalho, Almeida e Costa e Mário Silva entre outros.

1944 – Pertence à União Socialista que resulta da fusão do Núcleo de Doutrinação e Acção Socialista com a União Democrática. Constituída clandestinamente em 1945, tendo como primitivo nome União Democrato-Socialista. Foram especialmente activos alguns estudantes universitários, onde se destacam Manuel Sertório, Jacinto Simões, José Pessegueiro, António Lobo Vilela e Fernando Mayer Garção. Aderirão ao MUD Juvenil. Em 6 de Novembro de 1949 assinam um pacto para a constituição do Partido da União Socialista. Em 1954 e 1955 ainda tentam contactos internacionais para reconhecimento pela via dos socialistas franceses. Duram até 1964, quando se forma a Acção Socialista Portuguesa. Lança o jornal policopiado “A Terra”.

1948 – Fernando Vale é Vice-presidente da Comissão Distrital de Coimbra da campanha de Norton de Matos para a Presidência da República

1949 – É demitido do cargo de médico municipal e subdelegado de saúde por despacho do conselho de ministros.

A década de 50, foi também marcada pelas viagens…

… em Itália e Grécia com o seu amigo Miguel Torga … em África com Arganilenses.

1951 – Foi militante e dirigente do MUD (Movimento Unitário Democrático) com Mário Soares.

1958 – Participou e fez parte das Comissões de candidatura à Presidência da República do General Humberto Delgado

1961 – Integra as listas da oposição democrática por Coimbra, à Assembleia Nacional.

Em 1962 é detido à porta de sua casa. Passa a primeira noite em Coimbra e no dia seguinte é levado para Lisboa em carro celular. Só aí percebe que com ele estão também outros companheiros. À saída de Coimbra numa breve paragem do carro vê por acaso o filho mais velho e consegue dar-lhe a entender que vai para Lisboa. É encerrado no Aljube no “regime de encerramento continuado”. Muitas pessoas, inclusive ligadas ao regime iniciaram esforços no sentido de ser libertado. Muitos foram os que o visitaram na cadeia e muitas as cartas recebidas de amigos a dar apoio e mostrar solidariedade.

1969 – Fernando Vale participa no II Congresso da Oposição Democrática que durante três dias junta republicanos, socialistas, comunistas e anarquistas, em Aveiro. O almoço de encerramento conta com 2000 inscrições para um espaço que no máximo comporta 800 pessoas.

Participa activamente na preparação das eleições legislativas de 1969. Em Coimbra, no Teatro Avenida realizou-se uma enorme sessão distrital de propaganda com o teatro a abarrotar de gente entusiasmada. As eleições decorrem pouco transparentes. No país não é eleito um único deputado da oposição.

Em 1971 é afastado dos cargos de Director Clínico e Médico do Hospital Condessa das Canas por resolução da mesa-gerente que justifica o acto com o facto de Fernando Vale ter atingido os 70 anos de idade.

1973 – Participa no III Congresso da Oposição Democrática, de novo em Aveiro. Os congressistas são alvo da polícia de choque que carrega sobre os congressistas, acabando inesperadamente o congresso.

Em Abril de 1974 é nomeado Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Arganil.

A 29 de Maio de 1974, arganilenses homenageiam Fernando Vale e oferecem-lhe uma salva de prata e um álbum de fotografias e uma plaquete de gratidão pelos serviços prestados como médico, assinada por mais de 250 nomes que contribuíram para pagar a oferta.

1975 – Foi eleito Presidente da Secção Regional da Ordem dos Médicos, cargo que exerce até 1989.

1976 – É empossado como Governador Civil do Distrito de Coimbra. Este período ficou marcado pelo lançamento da construção do novo complexo dos Hospitais da Universidade de Coimbra e o início do projecto da regularização do caudal do Mondego e a construção da ponte do Mondego.

Põe por diversas vezes o cargo de Governador Civil à disposição do governo alegando a sua já avançada idade, mas só 1980 deixa o Governo Civil de Coimbra.

“Quem, como eu, se preza de o conhecer de longa data e de ter estado a seu lado nos bons e nos maus momentos, sabe com que dignidade atravessou os anos difíceis do Nosso decurso colectivo contemporâneo, incompreendido por alguns, estremecido por muitos, respeitado por todos. É que foi sempre igual a si próprio em cada acto que praticou, sem cuidar das consequências dos mais arriscados, dramáticas em várias horas. Perseguido, preso, julgado, demitido da função pública, nenhuma prepotência o vergou e desviou do recto caminho cívico da tolerância, da justiça e da liberdade. Beirão acabado no temperamento pertinaz e no apego arreigado ao berço nativo, a sua Coja bem amada, escarolado de espírito como ela de semblante, cordial e idealista, o Dr. Fernando Vale é uma encarnação moderna do português de antanho que em cada terra era um símbolo.”

Miguel Torga

“Na prática, conheci, o Dr. Fernando Vale, em 1945, por alturas do Movimento de Unidade Democrática (MUD), numa reunião oposicionista em que participei em Coimbra. Desde então, há quase sessenta anos, nunca deixei de saber notícias dele por amigos comuns – o Dr. Fernando Lopes, advogado de grande mérito, que, nessa época, era considerado o chefe político da Oposição no Centro da País. Convivi com ele, mas não intimamente, nas campanhas sucessivas de Norton de Matos, Humberto Delgado e, depois disso, ao lado de Mário de Azevedo Gomes, Jaime Cortesão e António Sérgio – nos tempos do Directório Democrático Social – os quais, depois do afastamento e morte de Fernando Lopes, consideravam o Dr. Vale como “o nosso homem, em Coimbra”.

Mário Soares

Homenagem

És serra e és vale, rio de verdades,

Memória e lembrança, orgulho lusitano;

És porta e és janela, mar de liberdades,

És intenção e gesto, ano após ano.

És forma e és ritmo em cada momento

Aurora da madrugada à espera de vez;

És água e és pedra do livre pensamento,

És génese e glória de ser português.

Carlos Teixeira

“Recordo, agora, com emoção pueril, os serões em sua casa, junto a meus pais, brincando com os seus filhos, espreitando sorrateiramente a sua biblioteca enorme ou entrando nela, de forma tímida, para desbravar a escrita dos grandes escritores ou dos pensadores que ajudaram a construir a sua formação cívica, o seu vasto horizonte cultural, e que eu, intimidade, mas determinada, tinha vontade de descobrir. Porque na figura do médico que me ajudou a nascer, na dor e na alegria, se mesclava a do homem culto, inteligente, arguto, que me emprestava alguns livros da sua colecção do Saber. Um homem com um sentido da vida e um modo de estar no mundo que passava pela 2modernidade” com que neles se enquadrava, atento aos sentidos dos outros e atento à sociedade em geral (ao modo de ser em sociedade).

Regina Anacleto

… Eu creio, de resto, que o grande segredo para a robustez do nosso Fernando Vale (além, claro, da excepcional construção orgânica com que a Natureza o privilegiou) reside no facto de ele pouco olhar os caminhos percorridos e preocupar-se apenas com os caminhos ainda a percorrer. O “ontem” apenas lhe serve como “inventário”, como “balanço”, mas pouco lhe importa. Importa-lhe sim o amanhã, o dia nascente, a fresca madrugada portadora de todas as esperanças!
Por isso, estar ao pé dele é assim como estar, no pino do Inverno junto à lareira … uma lareira que devolve às nossas fibras, quantas vezes enregeladas pelo frio do quotidiano, o calor benfazejo e revigorante. Estar ao pé dele é assim, como estar sempre em plena Primavera…

Sinde Filipe

“Eu, como é conhecido, estava no governo em 25 de Abril de 1974. Nesse dia, tendo deixado o meu gabinete completamente arrumado para qualquer eventualidade, perante aquilo que se sentia no ar, estava na Alemanha em visita oficial, onde soube dos acontecimentos.

(…) Alguns tempos depois fui a Coja. E naturalmente «senti» aquele clima e aquela postura da parte de alguma gente, o que compreendi e aceitei sem qualquer ressentimento, com dignidade e silenciosamente.

Num dia, num dos meus passeios pedestres que continuo a fazer, encontrando-me na recta da estrada do Pisão pára um carro uns metros adiante de mim. Dele saiu o Dr. Fernando Valle ao tempo Governador Civil de Coimbra. Cumprimentámo-nos. Ele mandou seguir o carro e que o esperasse à Ponte, meteu no meu o seu braço e disse-me: quero ir consigo de braço dado vila abaixo para demonstrar a esta gente que continuo a ter por si a mesma consideração.”

José Eduardo Mendes Ferrão

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