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Alberto da Veiga Simões (1888 – 1954). Nascido em Arganil, formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, entrando em 1911 para a carreira diplomática, no exercício de cujas funções esteve no Brasil (Manaus e Pará), Viena de Áustria, Praga, Budapeste, Bruxelas e de 1933 a 1940 em Berlim. Vivendo nos grandes centros europeus, aquele que começara por se interessar pela literatura e pelo teatro e sempre permaneceria atento aos problemas fulcrais da economia e da política, ao interessar-se pela história pôde, por tais circunstâncias, beneficiar da influência das correntes basilares do pensamento europeu e consagrar-se a minuciosas pesquisas em todos os arquivos históricos da Europa, reunindo impressionante acervo documental que utilizava à luz de uma informação extremamente actualizada.
Já em 1931 é vice-presidente da Comissão das Grandes Descobertas e representa Portugal no Congresso das Ciências Históricas de Budapeste. Nas suas concepções de então reconhece-se a marca decisiva de Henri Pirenne e entre os portugueses, como seria lógico, Jaime Cortesão e António Sérgio (e através deles, de Oliveira Martins). Como Cortesão, sublinha o condicionalismo geográfico na formação da nacionalidade e na génese da expansão, pelo pendor atlântico do país; o papel decisivo dos portos, o estímulo das Cruzadas quanto à abertura do comércio e criação de um meio cosmopolita. 1383 – 1385 como revolução que coloca no poder não um rei mas a burguesia: outras tantas ideias hauridas naqueles três historiadores; a Sérgio mais em especial (na linhagem aliás de Oliveira Martins) vai buscar o contraste entre as duas politicas nacionais – a de transporte e a de produção (veja-se “La Flandre, le Portugal et les débuts du capitalisme moderne”, na «Revue Économique Internationale» de Agosto de 1932 e separata, Bruxelas e Paris, 1933).
Mas, convivendo com W.Sombart durante a sua missão diplomática em Berlim (cujos relatórios parecem ser de grande importância para o estudo da Alemanha nazi e origens da Segunda Guerra Mundial), o rumo das suas concepções vai mudar, representando a transição o capítulo sobre “O Infante D. Henrique – o seu tempo e a sua acção” que deu para a “História da expansão portuguesa no Mundo” (vol. I, 1937) e o ensaio “Portugal, o ouro, as descobertas e a criação do Estado capitalista (I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo, Lisboa, 1938).
V.S. atinha-se ainda à consideração do factor unanimemente havido como essencial: «As rotas do Levante haviam sido cortadas pelos Turcos; a rota do Sul, através do Mar Vermelho, fora monopolizada pelo Egipto, que a explorava a seu talante, carregando-a de alcavalas, encarecendo o produto, rarificando-o nos grandes mercados do Norte, donde ele iria alcançar as cidades do Sul da Alemanha que acordavam para o comércio nos fins do sec. XIV.» Ora, «só o comércio rico do Oriente teria um volume capaz de ser expresso» na massa do ouro do Sudão, que sem aquele ficaria estéril. Este ouro alimentara durante dois séculos o tráfego europeu a distância, mas as perturbações do Norte de África tinham-no estancado e a pirataria tornava instável a navegação pelo Estreito.»
«Com o avanço muçulmano dos fins do século XIV, a Europa perdeu o contacto com as regiões auríferas do centro africano e ficou limitada à sua produção interior.» Mas, para além das razões que moveram esta ou aquela personagem, V.S. tentava já explicar o expansionismo por todo um longo processus social, objectivamente considerado, que, radicando na Reconquista, se prolongaria séculos em fora.
Em tal processus o espírito de cruzada não desempenha papel de relevo: «Religiosos povoadores como guerreiros religiosos eram conduzidos de preferência pela dilatação dos terrenos dum senhorio civil e pela sua valorização em rendas» que não por tal espírito. «A guerra religiosa era trazida de fora» para a Península: pelas invasões almorávidas, por um lado, por outro e sobretudo pelos «guerreiros franceses da cruzada internacional organizada sobre o Ebro pelo Papado e por Cluny, com sua feudalidade turbulenta e ávida.» Todavia, «Cluny e o seu espírito não teriam qualquer influência na sociedade portugalense». Não tem, pois, qualquer base o cruzadismo como factor explicativo da expansão, e aliás tal ideia de Bensaúde já fora eliminada pela crítica de Duarte Leite do número das hipóteses a ter em conta (em 1931, V.S. definia D. Henrique «un prince, coeur de croisé et intelligense de marchand»). Portugal, «a primeira unidade política europeia, de formação, de formação unicelular», resulta de «dois factores simultâneos, um peninsular, outro de ordem geral: 1) A desagregação di império leonês nos cinco reinos peninsulares; 2) A reabertura do comércio a distância pelas cruzadas, que lhe deu assento à actividade económica e lhe moldou as directrizes políticas. Porventura essas funções têm uma origem comum. «O seu regime de propriedade nada tinha com o feudal.»
Mas se V.S. aderia então a várias das ideias de Sérgio, Cortesão e Oliveira Martins, começava a marcar certas discrepâncias que posteriormente viria a vincar: «O volume da nossa burguesia, verbi gratia, e a sua formação social e económica, são inteiramente diferentes dos das burguesias citadinas europeias (e nisto reside uma das confusões de Sérgio). Por isso mesmo, a nobreza, após tentativas nos séculos XIV e XV de lhe invadir a função à sombra dos seus privilégios, pôde usurpar-lhe a partir de D. Manuel I e monopolizar a condução da vida social portuguesa», (passamos agora a utilizar a correspondência de 1943 1945). A depressão que pesava sobre a Europa desde meados do Séc. XIV atinge Portugal no seu último terço. Alta dos salários rurais, carência de mão-de-obra, redução dos réditos senhoriais, uma nobreza sem recursos que se vai acolhendo à corte.
Nos começos do Séc. XV, o problema português «assume» três aspectos: carência de rendas para a nobreza por estreiteza das terras e impossibilidade de as fazer produzir mais; carência de território, em que o espírito neo-feudal dessa nobreza se pudesse expandir; e, sobrelevando a tudo, o predomínio das cidades em que o rei, logicamente, apoiara a vida económica e social do reino; carência do instrumento monetário a distância capaz de vivificar pela sua entrada na economia una a depressão em que ela sufocava e de restituir a essa economia forças próprias com que sobrelevar a crise».
Há que distinguir o plano de Ceuta, o plano da circumnavegação de África, o plano das ilhas ……». A circumnavegação do continente africano visava as especiarias asiáticas, sem as quais o ouro ficaria estéril; tal objectivo surgiu graças ao «conhecimento exacto do mecanismo do comércio rico» que D. Pedro trouxera da sua estadia na Hungria; mas com esse objectivo fundia-se a procura directa do metal amarelo, cujo mercado fugira para o Cairo, e «dos escravos com que acudir à carência de mão-de-obra da metrópole, à sua alta de salários, e ao excessivo urbanismo». A conquista de Granada «seria um desviatório de nobres decaídos em rendas».
V.S. procurava posteriormente ir muito mais longe na análise destes problemas. «A destrinça na massa dos factos… do que sejam causas, fenómenos de aparecimento paralelo, e consequências, parece-me ser, para quem se curva sobre a sociologia histórica portuguesa, o problema mais delicado. O que nos pode aparecer por causas, poderá por vezes ser consequência, ou -na fórmula de Simiand- concomitâncias. Convenci-me de que não é possível medir com rigor as causas do expansionismo histórico e a sua situação real. O volume de cada classe no quadro social só poderá ser medido com relativo rigor traçando-o, com a sua história, desde o início, a sua evolução, seus recursos económicos e os que apreende estranhos ao seu volume próprio».
O expansionismo representa a mola «num país de colonização, construído pelo alargamento sobre terreno devoluto, ao sul do Douro, duma célula social desarticulada da Galiza já pela ganância dos nobres, até à actualização das comendas de Cristo como remunerações burocráticas pela Restauração do mesmo clã que utilizava e dominava, desde a morte do Regente –e posto de parte, o intervalo de D. João II- a acção em todo o além-mar». Haveria pois, que distinguir em Portugal, na era quatrocentista, múltiplas e autónomas economias. Entre os pontos que V.S. julgava ter já apurado figuram: «as cinco fases do plano de expansão, de D. João I a D. Manuel; a finalidade restrita e especial da Crónica da Guiné; a formação da lenda henriquina nos primeiros anos do governo de D. Manuel». A contribuição de V. S. é duplamente importante: por um lado como José de Bragança, fez intervir a figura do Infante D. Pedro; por outro lado, e sobretudo, esboçou o que pode ser uma visão sociológica dessas grandes personagens e principalmente do processus colectivo do expansionismo (embora se mantivesse preso a algumas das ideias nucleares dos historiadores anteriores).
Repetidas vezes disse que tinha efectivamente concluídas a História do Infante D. Henrique e a História di infante D. Pedro, bem como o primeiro tomo, que ia do século III ao VIII, de uma História Social da Península, destinada a iluminar e a servir de alicerce àquelas duas; mas, conquanto pareça que se sabe do paradeiro (em Paris) dos manuscritos de V.S. (figurarão estas obras entre eles?), têm resultado vãs as tentativas para abrir acesso até eles; ora a sua não publicação prejudica irremediavelmente o estudo do Portugal quatrocentista e seus antecedentes.
Vitorino Magalhães Godinho
In: Dicionário de História de Portugal – direcção de Joel Serrão. Porto: Livraria Figueirinhas, imp.1989