Idade do Ouro (1907 – 1920)
Pai, Mãe e Irmã
ROMANCE
Ora pois: foi tal qual como vos digo:
Minha Mãe, certo dia, pôs a questão assim:
– Ou Ela, ou eu!
E ficou resolvido que no dia doze
Minha Mãe parisse,
E pariu!
Pariu e ninguém se opôs! Ninguém!
Como se fosse um feito glorioso
Parir assim alguém, tão nu, tão desgraçado!
Por mim,
Ainda disse que não.
Mas o seu Anjo da Guarda
Era forte e tenebroso…
E aquele frágil cordão
Deixou de ser o meu Pão,
O meu Vinho
E a paz eterna do meu coração
Mesquinho.
Deixou de ser o silêncio
Delicado e agradecido
Dos meus instintos menores…
Deixou de ser o Norte daquele lago
Onde boiava o meu corpo
Sem alegria e sem dores.
Deixou de ser aquela verdadeira
E sagrada ignorância do meu nome,
Que Satanás me disse, quando disse:
-Respira e come,
Respira e come,
Animal!
(A voz de Satanás já nesse tempo
Era humana e natural…)
Deixou de ser um mundo e foi um outro.
Foi a inocência perdida
E a minha voz acordada…
Foi a fome, a peste e a guerra.
Foi a terra
Sem mais nada.
Depois,
Sem dó nem piedade a vida começou…
Minha Mãe, a tremer, analisou-me o sexo
E, ao ver que eu era homem,
Corou…
In, O Outro Livro de Job. (1936)
Em 1913 começa a Escola Primária.
1917 – O facto de ter concluído a 4ª classe com distinção, leva o pai a pensar que o seu futuro não poderia ser a enxada.
“Pouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou chamar meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguisse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila. Meu Pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar… Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada … Gostava, gostava, de me ver professor, ou médico, ou advogado. Mas nicles, faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde… Já se lembrara do seminário. Aí é que talvez pudesse ser. Se arranjasse a meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca…
O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados à terra, a embrutecerem, ou eram arrebanhados pela Santa Madre Igreja. Não! Tudo, menos papa-hóstias. Então, era o Brasil.”
In: A Criação do Mundo – O Primeiro Dia
1917 – Vai para o Porto supostamente trabalhar num escritório, mas acaba a servir em casa de uma família. A sua rebeldia começa a manifestar-se. É também aqui que começam as primeiras leituras que o irão influenciar: Irmãos Grimm, Fábulas de La Fontaine, Hans Christian Andersen.
1918 – Com a ajuda do prior da aldeia, vai para o Seminário de Lamego, onde permanece um ano.
“Lavado em lágrimas, despedi-me de meus Pais, que meteram afoitamente pela ladeira acima a tanger a burra, que queria ficar. Ainda em soluços, vi-os dobrar a esquina e desaparecer. A enxugar os olhos, subi os três lanços de escada que levava ao segundo andar, onde encontrei os companheiros que iria ter.
Passei o resto do dia à espera de ouvir daqueles desconhecidos uma palavra de consolo. Mas eram infelizes como eu, que a pobreza trouxera até ali, sem calor no coração para repartir. Benzeram-se e rezaram antes e depois do jantar, e eu imitei-os. Quando bateram as dez, enfiaram-se na cama. O que fiz também.”
In: A Criação do Mundo – O Primeiro Dia
1919 – Nas Férias de Verão decide não voltar ao seminário.
“Quase no fim das férias, declarei ao meu Pai que não queria ser padre.
Quando tal ouviu, a primeira coisa que fez foi correr à porta da rua a ver se alguém passava que tivesse ouvido a blasfémia. Depois, mandou-me calar, acrescentando que me partia a cara se eu continuasse a dizer baboseiras.
– Pedaço de asno! – concluiu. – A gente a querer tirá-lo da miséria, e ele a agradecer desta maneira!
Aquela atitude desabrida meteu-me medo. Mas a minha decisão era inabalável. Apertado de todos os lados – minha Mãe, coitada, só não se ajoelhou diante de mim, acabei por jurar que me atirava ao Douro da ponte da Régua se me fizessem voltar para o seminário.”
In: A Criação do Mundo – O Primeiro Dia