Práticas Sociais, Rituais e Eventos Festivos

“O Enterro do Entrudo

O Enterro do Entrudo é o fechar da porta às comemorações carnavalescas. No fundo, a sua concretização encerra as folias e os exageros cometidos nos dias anteriores.

Não se sabe a data do aparecimento em Coja de Enterro do Entrudo, mas resultará decerto de uma importação de outras paragens. Sabe-se, por vox pop, que em meados do século passado a realização do Enterro ficou envolta em acesso polémico pelo facto da semelhança com rituais religiosos (as irmandades, as vestes, os textos e a música fúnebre), o que teria resultado mesmo numa queixa às autoridades religiosas por parte dos mais devotos. Por essa razão, o Enterro andou suspenso, até que na década de 80, pela mão de Jorge Manuel Moura Bento Rodrigues (“Boticas”) se retoma a tradição.”

“Em Coja, constitui-se uma Irmandade improvisada, portadora da urna onde jaz o Entrudo e de algumas bandeiras alusivas às colectividades da terra, já que o personagem é de alta sociedade, bandeiras essas análogas às utilizadas pelas irmandades religiosas, um grupo de músicos que acompanha o cortejo anunciando, com Marcha Fúnebre, a tristeza do momento e os acompanhantes, que à luz de vela, levam o Entrudo à sua última morada, respondendo com a expressão “tinto!” às “orações” do Bispo, elemento chave de todo o Enterro, para além de chorarem copiosa e ruidosamente.”

O percurso inicia-se na Rua António Santos Calinas (na Alta), seguindo pela Ladeira de Santo António (sentido descendente), Rua Principal e terminando, nos últimos anos, no Terreiro da Fonte ( margem direita do Rio Alva). À passagem por cada “capela”, leia-se tasca, o cortejo pára para escutar as “orações” do Bispo…

QUEREDÃM!

Creio no alcoól a 36 graus todo poderoso, criador de formidáveis carraspanas. Creio na aguardente sua filha e minha esposa predilecta, a qual foi concebida por boa e graça do alambique, nasceu da puríssima cana e padeceu sob prisão dos moinhos, foi derramada e sepultada num casco. Ao 3º dia surgiu da garrafa e subiu graciosa e triunfante à caixa dos pirolitos.

Escoou o fundo da caldeira e está no tonel rolhado, estando à mão direito das barbas do bagaço, donde há-de vir alegrar uma grande pândega sem fim. Dar vistas aos grandes e pequenos, vivos e mortos, ricos e pobres, doutores e burros, santos e diabos.

“Portanto, creio na repetição da pinga, na Santa vindima anual, na comunicação dos irmãos do esgota, na renovação das pipas vazias, na bebedeira eterna.

TINTO!

PATHER NOSTHER

Santa uva que estais no paraíso, purificada sejais vós sem enxofre, venha a nós o vosso líquido, para que seja bebido à nossa vontade, tanto em casa como na taverna, 3 litros em cada hora nos dai hoje, perdoai-nos as vezes em que bebemos menos, assim como o mal que nos fazeis, não nos deixes cair atordoados e livrai-nos da policia em horas mortas!

TINTO!

Já no seu terminus e antes da leitura do “testamento”, o Bispo discursa aos acompanhantes usando para o efeito os textos seguidamente apresentados:

I – Entrudo que chegaste ao fim, venha a nossa liberdade em todos os comes e bebes, como em todas as cegadas. A liberdade de cada um nos dê hoje. Perdoai as cégadas que ele fez, assim como nós perdoamos e prometemos fazer-lhe uma festa ainda maior pró ano.

Não nos deixeis cair nas valetas por carga a mais e livrai-nos do pecado dos 5 litros. TINTO!

II –Caros farsantes: Morreu o pai das cegadas! Da sua vida pouco (ou nada mesmo) sabemos! Nasceu pobre, viveu pobre e morreu mais pobre ainda, senão miserável. Sendo ele, no entanto, dotado de um incansável espírito folião, provocando em cada terra que visitava as mais diversas e espampanantes cegadas. Com aquela graça que brotando de dentro de si, súbita e felina, era o responsável pelo gasto de fabulosas fortunas nas realizações das mais sucessivas e variadas palhaçadas a que ele mesmo dava azo.

Não sabemos se haverá coração onde exista tão nobre qualidade mas sabemos, isso sim, que sendo o Entrudo um personagem popular, viveu entre vós durante estes dias, proporcionando-vos alegria, divertimentos e até algumas paixões assolapadas.

Não foi o Entrudo dotado de um amor ardente, já que demorando-se poucos dias em cada lugar, o cantava por tascas e baiúcas, dividindo-o entre límpido e palponizante sentido da teoria e do amor poético! Terá amado alguém? Não sabemos! Mas e sempre com ar galhoteiro dizia: “o que vivi e passei a ninguém contarei, porque dá pena e causa dó, mas para o ano voltarei!”

III – E assim, caros farsantes, depois destas simples mas sentidas palavras sobre o que me foi dado a conhecer da breve vida do Entrudo, façamos uma pequena chamada à nossa consciência, pois que todos o ajudámos a condenar.”

“E neste Paço, o julgamento feito por um juiz destemido e forte que sentenciando um enforcamento lhe causou assim a morte.

Aquilo que vos acabei de ler foi feito com muita fé. De tanta gargalhada que dão, não se mijem p`rái em pé.

Finalmente a leitura do testamento do condenado, mantendo-se a forma poética da Corridela e do Sermão, embora desta feita numa toada mais generalista, mas que não deixa de aborrecer os mais sensíveis.”

“I
Cessem já essas risadas
Terminem com isso tudo
E ouçam com muita atenção
O testamento do Entrudo

II
Porque este pobre palhaço
Que a tantos tem feito rir
Quis antes da sua morte
Os seus bens repartir

III
Poucos dias de sol teve
E não pôde trabalhar
Por isso não esperem muito
Pois tem pouco para deixar

IV
Coitado do pobre entrudo
Diz que não tem que deixar
Mas deixa às solteironas
Um noivinho para casar

V
Deixa à juventude vadia
Um conselho a tomar
Que vivam com alegria
Mas não andem a moinar

VI
Deixa a todas as donzelas
Que vieram ao seu enterro
2 alhos e 3 ferraduras
E uma gaita de bezerro

VII
E ainda p`ras donzelas
Que lhe foram ingratas e falsas
Um lindo tesouro que esconde
Na abertura das suas calças

VIII
Deixa a todas as beldroqueiras
Por não terem em quem se ocupar
Um grande novelo de intrigas
P`ra se entreterem a desfiar

IX
Deixa um rol de pedidos
À nossa Câmara Municipal
P`ra que cumpra os prometidos
Na campanha eleitoral

X
À junta de Freguesia
Um elogio vai deixar
Pelas ruas do Outeiro
Ter mandado arranjar

XI
Deixa aos políticos opinião
Que não tem qualquer mal
Se querem ganhar eleições
Têm que dar ao pedal

XII
E p`ra todo o que é patrão
Um brinquedo vai deixar
Deixa-lhe um pequeno balão
Que o empregado vai soprar

XIII
Deixa ainda ao patrãozinho
Um conselho p`ra seu bem
Cuidado com o tintinho
Não caia no balão também

XIV
Deixa a todos os lacaios
Que os colegas vão observar
Pano p`ra fazerem saios
Que era o que deviam usar

XV
A toda a rapaziada
Que colaborou na organização
Não lhes podendo deixar nada
Leva-os todos no coração

XVI
Ao pregador nada deixou
Por bem cumprir a missão
Adeus até para o ano
Vá estudando outro sermão

“Para além do que foi anteriormente exposto, importa igualmente apresenta as despesas e receitas referente ao Carnaval que está prestes a findar, apresentação está também a cargo do Bispo.

Fiéis aos documentos consultados, os que se apresentam ainda referem o escudo como moeda, pois datam de 1993. E porque a História o impõe, assim ficam as contas.

Factura: em tantos de tal

Despesa feita durante estes dias de cégadas com o entrudo

Enfeitar os andores – 180 000$00

Combustível de viaturas – 50 000$00

Pregador do Sermão – 40 000$00

Sacristão – 15 000$00

Para os irmãos das cégadas (1 almude) – 5 600$00

Uma farda em pura lã virgem (mortalha) – 90 000$00

Representação da música (1 almude) – 5 600$00

Manta da cobertura em cetim – 30 000$00

Incendiário – 1 500$00

TOTAL: 417 700$00

Receitas:

Peditórios realizados: sem contas!

Donativos camários: até ver, nada!

Donativos da Junta de Freguesia: apoio moral!.

O.B: Estas contas não têm IVA incluído dado que o contribuinte é de utilidade pública. Os herdeiros só mais tarde saberão a parte que lhes cabe.

Finalmente, o condenado é queimado em frente à assistência que apagando as velas transportadas no cortejo, retorna a suas casas, aguardando o próximo ano e o próximo Carnaval.”

in: OS CASTIÇOS Costumes e Tradições do Carnaval da Vila de Côja

Nuno Mata e João Luís Marques Gonçalves, Côja 2004